Físico vs. Digital - A tua coleção não é verdadeiramente tua

Mas pode ser.

Aviso: O seguinte texto reflete exclusivamente a opinião do editor, não é uma tomada de posição da redação do IGN como um todo.


No universo dos videojogos, há anos que se discute apaixonadamente o "físico vs. digital", com argumentos de variáveis méritos para cada um dos formatos, liderados pelo colecionismo de um lado e a conveniência do outro.

Não sei se os jogadores são mais resistentes à mudança do que os restantes consumidores, olhando para o mundo digital, dos livros por exemplo, mesmo que não falte quem se confesse dependente do cheiro natural das páginas de um livro, não vejo ninguém a questionar os méritos das versões Kindle em comparação com o formato físico. No caso da música é ainda mais evidente a vantagem da conveniência, com o mercado repartido entre os serviços de streaming e um colecionismo muito específico, como o dos discos em vinil.

Mas o objetivo deste texto não é ressuscitar o tema dos méritos e desvantagens de cada um dos formatos, perderia um bom tempo só a questionar as diferenças de valor cobrados por cada um. O "desvario" de hoje está relacionado com algo mais profundo no mundo digital, que proponho analisar à luz de três dimensões: posse, preservação e conectividade. Veremos como é mais ou menos indiferente o tipo de media neste caso e como é importante pensar o futuro do mundo digital à luz dessas dimensões.

Posse

Lamento se te estou a dar uma novidade, mas os teus jogos, os teus filmes, os teus livros digitais, não são verdadeiramente teus. Os jogos na tua conta de Steam não são teus, e quando acedeste à Amazon para adquirir o livro Fire & Blood de George RR Martin, aquilo que compraste não foi exatamente o livro do autor de Game of Thrones, mas antes uma chave de acesso a um servidor centralizado, que te permite aceder aos conteúdos da obra. Essa pode ser alterada, reordenada ou até totalmente retirada de circulação pelo seu verdadeiro dono, também não pode ser revendida, oferecida ou sequer emprestada depois de dela desfrutarmos na totalidade.

(...) os teus jogos, os teus filmes, os teus livros digitais, não são verdadeiramente teus.

Experimentem comprar um filme na box da Vodafone e mudar de serviço, ou uma hipótese ainda mais parva, comprar um jogo na PlayStation Store e tomar a decisão livre de mudar de plataforma para a Xbox. É certo que um videojogo é um exemplo muito mais complexo por precisar do jogo de um lado e da máquina para processá-lo do outro, mas é inegável que a minha coleção de cartuchos Mega-Drive é muito mais minha, do que a biblioteca de jogos da Steam, PSN, etc.

Preservação

Mas porque é que tudo isto importa? Desde logo em nome da preservação das obras. Vou começar novamente pelos livros por ser o exemplo historicamente mais paradigmático, pelos livros banidos ou queimados nas fogueiras em nome de qualquer coisa diferente de nós, a informação perdida, para sempre, em milhares de textos ao logo da História.

Uma das características do conteúdo digital é poder ser copiado infinitamente, o que resolveu de certo modo o tema da preservação do conhecimento nos livros, dificilmente uma obra se perde hoje irremediavelmente, no entanto, os sistemas "gated" que as editoras forçam sobre as suas plataformas e consequentemente ao acesso aos livros pela população geral, permitem-lhes o controlo total e demasiadas vezes abusivo, sobre os livros que estão disponíveis e o seu conteúdo. Perderia horas apenas a falar sobre os livros escolares e as suas rotações.

Pode argumentar-se que os conteúdos áudio e vídeo são hoje mais democráticos e acessíveis do que nunca, plataformas como o Netflix, YouTube ou Spotify estão aí para prová-lo. Por um lado isso é verdade, mas por outro, não faltam exemplos discutíveis de censura nestes gigantes, que além de mudarem as regras ao sabor da sua vontade, provavelmente retiram bastante mais valor dos vídeos carregados nos seus servidores, do que o que distribuem com os respetivos criadores desse conteúdo. E a Internet é suposto ser de todos. O próprio Guillermo Del Toro juntou-se a outros nomes como Christopher Nolan em defesa do formato físico como forma de preservação da arte.

(...) dicotomia perigosa porque assume que a única forma de preservação, é a defesa do formato físico. Não é...

É um tema que assume contornos ainda mais apaixonados no gaming, uma dicotomia perigosa porque assume que a única forma de preservação, é a defesa do formato físico. Não é, e já lá vamos. Com o advento do digital e um mercado de segunda mão cada vez mais inflacionado, é difícil aos jogadores mais jovens ter acesso a certos jogos. Os gigantes sabem-no, foi por isso mesmo que PlayStation e Xbox criaram as suas próprias equipas dedicadas à preservação dos jogos, uma reconhecimento de que é preciso manter os títulos antigos disponíveis nas suas plataformas de distribuição digital, mesmo que por detrás de uma subscrição. Está no nosso controlo? Não, mas é melhor do que nada e a reação apaixonada da comunidade é a única coisa que ainda mantém as corporações em sentido.

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Conetividade

Tenho para mim que os verdadeiros heróis do mundo dos videojogos não são as marcas ou as consolas, são os produtores e artistas que colocaram o suor, lágrimas e linhas de código nas experiências que nos foram apaixonando. Na literatura e na música é mais evidente o elogio ao escritor e artista, no audiovisual surge a figura do ator ou realizador. Salvo raras exceções, o gaming é, até pela complexidade e multidisciplinaridade, menos autoral. Claro que isso não significa que as equipas de desenvolvimento não se interessam pelos seus jogadores, eles são aliás tudo o que lhes interessa.

Quanta informação tem o artista, o escritor ou o game designer, sobre as pessoas que de facto consomem o seu trabalho e como o consomem? Estará a Amazon disponível a partilhar as suas métricas com os autores dos best sellers? Permitirá a Microsoft que os estúdios acedam a dados sobre os hábitos de consumo dos seus cliente, que lhes ofereçam uma skin ou um nível extra? E são eles clientes de quem exatamente, da plataforma onde adquiriram o jogo, ou do estúdio que o desenvolveu?

Num espaço de ruído como o da Internet, serão as médias do Metacritic ou Rotten Tomatoes fidedignas para expressar as opiniões dos consumidores, teriam eles a ganhar com um canal de comunicação e interação direta com os criadores? E se um autor pudesse saber exatamente quem lê as suas obras, comunicar com essas pessoas, dar-lhes acesso a conteúdo único, como um Patreon orgânico e onde o pagamento de valor dispensaria a peça central.

O que está a ser feito?

Falemos então de "posse" no mundo digital usando uma palavra assustadora, que felizmente consegui evitar até aqui: Blockchain! Também aí os principais avanços têm acontecido no mundo dos livros digitais, a primeira peça de um puzzle condenado a ordenar-se e a abranger diferentes tipos de media.

O projeto que melhor tem conseguido penetrar o mercado chama-se book.io, uma editora de conteúdos digitais onde autores independente podem escolher publicar as suas obras e interagir diretamente com quem os lê.

O sucesso deve-se a um use case óbvio e do facto de ter merecido fortes níveis de investimento, mas penso que o ingrediente principal está na tecnologia, que permite que qualquer pessoa possa recorrer à sua app, rebatizada de stuff.io para incluir outro tipo de conteúdos digitais, para comprar um qualquer item com cartão de crédito, sem ter de perceber nada sobre a tecnologia por detrás.

Existem outros projetos a trabalhar esta área, como o Scenarex ou Publica, que chegaram a ser mencionados num especial Forbes, e para os mais entendedores da tecnologia, há quem esteja a estudar a inscrição de livros na primeira camada da própria Bitcoin, como o Inscripedia, o que os tornaria aí sim, verdadeiramente eternos e imutáveis.

O GAMING...

O mundo do gaming será, muito provavelmente, o último a encontrar soluções de ownership independentes dos servidores centralizados das gigantes da indústria. Não estamos ainda em tempo de defender o Web3 gaming. O espaço está repleto de amadorismo e pior, maus atores que suplantam em muito o número de jogadores bem intencionados, mas é um espaço de grande potencial e em crescimento, longe dos holofotes dos gigantes, nada interessados em falar sobre distribuição de valor ou economias guiadas por regras naturais de mercado.

Aos poucos as coisas têm mudado, nomeadamente no mercado mobile, mas também vemos companhias gigantes como a Epic Games, que têm já regras para a utilização de tecnologia blockchain e uma lista de jogos a caminho da sua plataforma, utilizando diferentes elementos de ownership através de mecânicas P2P e NTFs.

O assunto ganha ainda maior preponderância quando discutimos o chamado User-generated Content, ou conteúdo criado pelos utilizadores, que é depois usado pelos detentores dos jogos para rentabilizar o seu modelo de negócio, dividindo, ou não, os lucros com os criadores. Pensem em exemplos como Minecraft ou Roblox, este último, talvez o maior dos dependentes desse conteúdo (via appeconomyinsights).

Os jogos não são nossos, chegamos a cúmulos de comprar edições especiais com caixa mas sem disco, apenas o código para descarregar o conteúdo. Aquilo que nós adquirimos nas lojas digitais é o direito a descarregar um jogo a partir do servidor da distribuidora, normalizando no processo a contínua alteração da obra ao ritmo das vontades de terceiros. Pode ser espetacular, mas não é posse, não garante preservação de coisa nenhuma e nem sequer parece o melhor para o crescimento da indústria e das pessoas que criam os videojogos.

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Sonho com o dia em que apareça um jogo de verdadeira qualidade, capaz de atrair milhares de jogadores pelo seu valor intrínseco mas onde os intervenientes são efetivamente donos do jogo ou dos seus itens digitais, de modo transparente como já acontece com os livros. Bem sei que os mecanismos que regulam a posse são complexos e raramente dispensam algum tipo de autoridade a comprová-lo, mas no seu nível mais básico, diria que a posse de algo devia incluir sempre a capacidade para usar, emprestar/oferecer e sim, vender se assim quisermos, o produto em causa. Se for temporário, ou dependente, ou limitado, ou apenas o acesso, não basta colocar a informação numa das milhares de linhas de texto do acordo de serviço, mudem o botão "comprar" para "obter chave de acesso".


Antigo residente de Azeroth, mudou-se para o mundo real para escrever sobre as coisas que o apaixonam. Desconfia-se sonhar ser super-vilão. Podes segui-lo em @Darthyo.