"Eu não aguentava mais": como um servidor do Discord nasceu a partir de uma chamada entre amigas e se tornou uma comunidade segura para mais de 10 mil jogadoras

O que surgiu da necessidade de uma mulher, se tornou o refúgio de muitas.

Apesar de parecer muito divertido, o cenário dos games é, muitas vezes, assustador. Parte da comunidade acolhe grupos específicos e empurra outros para escanteio. Mas o problema vai muito além da resistência em aceitá-los: o alerta se acende quando o “não querer jogar junto” se transforma em racismo, assédio, homofobia e outros crimes. A intolerância nesse meio não é algo novo e apesar de todos já terem conhecimento sobre o assunto, poucas mudanças são vistas. Mesmo assim, a pauta tem chamado atenção de jogadores, desenvolvedores e mobilizado esforços das empresas para criar espaços mais seguros.

Uma das maiores plataformas de comunicação online também tem pensado em meios para combater a intolerância: sim, estamos falando do Discord. Afinal, quando se pensa em game, logo se pensa na plataforma e, em entrevista ao IGN Brasil, Gabriel Recalde, líder de políticas públicas do Discord na América Latina, contou quais são as iniciativas que a empresa tem implementado para que os jogadores tenham espaços seguros e inclusivos, além de novidades para os usuários.

Mas não apenas os executivos, como os próprios consumidores também estão tentando fazer a diferença. Esse é o caso do ComfyPlace, um servidor para mulheres dentro da plataforma, que se torna necessário já que, seja por construção social ou apenas ignorância do meio gamer, a falácia de que "jogos são coisa de menino" continua sendo reproduzida.

ComfyPlace: um lugar seguro de verdade

Eduarda Duarte, mais conhecida como Dudi, é influenciadora e criadora do ComfyPlace, uma comunidade realmente segura para mulheres, que são diariamente vítimas de assédio, machismo e intolerância na comunidade gamer. Ela conversou com o IGN Brasil e contou como surgiu a ideia de criar a comunidade, que atingiu a impressionante marca de 10 mil membros. Além disso, Dudi também explicou como tudo funciona por lá, inclusive quais assuntos são abordados — o que com certeza deixa muitos curiosos.

“Eu jogava e sempre fui apaixonada por jogos, mas teve um momento da vida que percebi que não dava mais, por isso passei um ano sem jogar. Eu realmente não aguentava mais a toxicidade e o machismo que eu enfrentava na comunidade gamer. Até que um dia eu senti falta de jogar, mas precisava me sentir confortável para isso”. Foi então que Eduarda publicou um vídeo no TikTok à procura de mulheres para se juntarem à ela nos jogos — o que ela não esperava é que muitas também procuravam a mesma coisa.

Eduarda Duarte, criadora do ComfyPlace - Créditos: Instagram

Em certo momento se tornou impossível pegar o nick de cada uma e chamar para jogar, então veio a ideia: criar uma comunidade no Discord. Na busca de suprir a própria necessidade, floresceu uma iniciativa grandiosa, que não só acolhe como ajuda jovens com a mesma dor. E acredite, o que a Eduarda enfrentou não é um caso isolado. Segundo dados de um relatório anual compilado pela Liga Antidifamação em 2023, 48% das gamers relatam ter sofrido assédio.

"A maneira como as mulheres adotaram o servidor ComfyPlace com tanto carinho e respeito, transformando-o em uma comunidade de jogos divertida e aconchegante no Discord, me traz muitas memórias especiais. Na primeira semana, já havíamos atingido a marca de 100 membros. Um ano depois, éramos mais de 10 mil. Isso mostra que estamos fazendo a diferença, e pensar que tudo começou com um pequeno grupo de bate-papo no Discord com minhas amigas mais próximas."

Vale frisar também que o ComfyPlace é uma comunidade feminina então, sim, todas as mulheres são acolhidas por lá, sejam cis ou trans. “É importante esclarecer que é uma comunidade para mulheres cis e trans, porque eu entendo que existe essa preocupação das meninas quando elas vêm falar comigo, existe previamente um medo em entrar em comunidades. Isso acontece porque nós sofremos esse preconceito e retaliação”.

Como entrar na comunidade?

O server cresceu muito em pouco tempo, graças aos conteúdos criados por ela em suas próprias redes sociais. No entanto, apesar de já ter muitos membros, muitos ainda têm vontade de participar, mas não sabem como. Se você é mulher e deseja entrar na comunidade, trago boas notícias: você também pode.

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Tudo funciona de forma simples, a ideia é realmente ter um espaço acolhedor e feminino. A importância de ter um lugar assim fica ainda mais explícita com os resultados preocupantes da pesquisa da Sky Broadband, que apontou que 1 em cada 10 mulheres cogita suicídio após sofrer ameaças em jogos online.

Para garantir a segurança de todas, é feita uma avaliação antes do ingresso no servidor. “Quando você entra no servidor, precisa preencher um formulário com algumas informações sobre você. Ele tem duas finalidades: confirmar se você é mulher e se não é uma pessoa tóxica. Nós olhamos suas redes sociais para saber como você se autodenomina, até porque gênero não tem cara, e analisamos as publicações para ver se não é agressiva. Então são informações simples, não pedimos nada confidencial”.

Caso você nunca tenha participado de uma comunidade assim, eu te conto quais assuntos são abordados por lá: todos! Por ser um grupo feminino, muito se fala sobre roupas, conselhos, dia a dia e é claro, muitos jogos.

Destruindo o mal pela raiz

Apesar de ser uma importante iniciativa e um grande passo para a mudança no cenário, sabemos que algo muito maior deve ser feito para combater a intolerância. “Acredito que hoje precisamos desse apoio vindo das empresas, porque a comunidade por si só já trabalha muito para correr atrás do prejuízo. [...] a diferença é quando a atitude vem de cima, porque de baixo a gente sempre vai tentar melhorar a comunidade, mas quem realmente tem força é quem dita as regras, que no caso são as publishers e as empresas”. Mesmo sempre denunciando, foi Eduarda que precisou deixar os games e mudar de cenário. Ela só voltou a se sentir acolhida quando finalmente criou seu servidor no Discord — e foi apoiada pela plataforma, contando sua história até mesmo na gamescom latam durante um painel.

O Discord ganhou grande relevância por fazer os jogos se tornarem experiências compartilhadas, proporcionando um enorme potencial para criação de comunidades e abrangendo experiências sociais no mundo virtual. Conexões como as criadas pelas muitas mulheres no ComfyPlace reafirmam a importância de plataformas como essa no mercado. Mas, afinal, o que o Discord tem feito para que os jogadores tenham espaços mais seguros e inclusivos?

Práticas de segurança impossíveis de burlar

Gabriel Recalde, líder de políticas públicas do Discord na América Latina, conta que a segurança está em todo o desenvolvimento do produto e da experiência do usuário. Basicamente, o Discord conta com três níveis de segurança: diretrizes da plataforma, ferramentas de moderação da comunidade e o controle que o próprio usuário tem.

“Entendemos que para as pessoas fazerem o melhor uso do Discord, elas precisam estar seguras. Então existem as regras definidas pelas diretrizes da plataforma que precisam ser seguidas por todos. As comunidades também podem definir suas próprias regras, que não podem ir contra as diretrizes, mas podem complementar. Como é o caso da Dudi, que tem um servidor só com mulheres. Ainda temos os controles do usuário, que podem configurar e controlar a experiência dentro da plataforma. Seja definindo quem pode enviar uma solicitação de amizade, quem pode enviar mensagem e de quais comunidades deseja participar”.

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Além de tudo isso, o Discord conta com o automod, uma ferramenta que usa filtros para identificar e filtrar palavras e expressões pré-definidas, possibilitando ao criador de uma comunidade o controle total do que é falado pelos usuários no server, barrando qualquer tipo de discurso de ódio. Todas essas práticas são indicadas pela plataforma para facilitar a moderação dos servidores e garantir um ambiente saudável para todos.

Eduarda Duarte usa automod, e fez questão de contar sua experiência com a função. “Ele já tem algumas palavras pré-configuradas que ele entende como coisas sensíveis, mas também podemos adicionar. Eu modero o server praticamente sozinha e isso é muito legal, porque o automod me garante que quando eu entrar na comunidade, ela não vai estar um caos”.

Novidades no Discord

A plataforma reconhece que a América Latina é uma região importante para a indústria dos games e, com isso, podemos esperar novidades. Não à toa, o Brasil tem aproximadamente 115,9 milhões de usuários ativos no Discord, segundo dados do World Population Review, o que prova a potência dele por aqui. “A América Latina é uma região muito interessante e importante, com a indústria de desenvolvedores de games crescendo e com a população jogando cada vez mais. Então como o Discord está focado em interagir cada vez mais com essa indústria e com os jogadores, os usuários podem esperar novidades”, afirma Gabriel Recalde.

Mas o líder de políticas públicas também revelou um projeto muito importante da plataforma: o Teen Charter. Se hoje existe tamanha necessidade de uma maior segurança, também é preciso ouvir as necessidades dos usuários — e isso é o que foi feito com a iniciativa. O projeto ouviu grupos de jovens usuários do Discord no mundo inteiro e funcionará como um lugar para ouvir o usuário e entender como ele quer ter a experiência, promovendo a inclusão e o aprendizado. O Teen Charter será lançado na plataforma em breve, com expectativa para os próximos meses.

“À medida que a plataforma avança e evolui nas questões de segurança, se torna necessário ouvir e envolver os adolescentes nesse processo. É algo que a empresa entende muito bem e dá muita importância para isso”.

Não é só “uma brincadeira”

Sabendo que a plataforma se preocupa com seus usuários, tudo fica um pouco mais leve — mesmo tendo a convicção de que ainda há muita luta pela frente. Uma pesquisa apontou que, 49% das mulheres já sofreram insultos ou assédio enquanto estavam jogando ou transmitindo lives de games pela internet, portanto, a busca pela segurança está bem longe de acabar.

Mesmo assim, servers como o ComfyPlace mostram que as comunidades não são apenas “brincadeira”. Apesar de servir como um lugar para jogar e conversar em grupo, histórias emocionantes acontecem por lá. Esse é o caso de uma das integrantes do grupo, que passou por dificuldades financeiras e foi ajudada por outras mulheres. Emocionada, Eduarda Duarte contou como tudo aconteceu. “Uma jovem, de 22 anos, era mãe, me chamou no privado e falou: ‘Dudi, eu não queria recorrer a isso, mas vejo que as meninas do servidor são muito unidas. Eu tenho uma bebê, perdi meu emprego e meu marido também perdeu o emprego. Agora eu estou desesperada porque não temos o que comer’”.

“Ela me mandou foto da bebê, da casa dela e de tudo. E deixou claro que não estava pedindo dinheiro, mas precisava de ajuda de alguma forma. Foi um pedido de socorro. Foi então que eu e as meninas do grupo nos reunimos e fizemos uma vaquinha de arrecadação. Naquela mesma noite ela mandou uma foto da mesa dela cheia de sacolas de mercado, agradecendo e falando: ‘Vocês garantiram a janta e o almoço da minha família por um mês com a força de vocês’. Coisas que para a gente são simples, para ela foi muito importante. E isso mexeu muito comigo, porque foi a união das meninas do servidor que fez tudo acontecer”.

O final feliz foi além do alimento, já que pouco tempo depois a jovem conseguiu se reestabelecer e, com certeza, a ajuda do grupo naquele mês foi um “respiro” e fator determinante para que tudo continuasse dando certo. No fim, as comunidades virtuais se tornaram tão importantes quanto pessoas próximas na “vida real” — e isso só mostra o quanto devemos nos conscientizar cada vez mais sobre as problemáticas nesse meio.


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